domingo, 20 de agosto de 2017

Procurador Hélio: Política Em Análise No Congresso Vai Eternizar O Sistema Corrupto No Poder

Procurador da República que alertou sobre rombo no BNDES diz que proposta em trâmite no Congresso vai dar todo poder de decisão aos donos de partidos e não ao eleitor, sobre as escolhas das urnas no próximo ano

O procurador da República Helio Telho Corrêa Filho é um dos nomes mais respeitados do Ministério Público Federal em Goiás. Três anos atrás, em entrevista ao Jornal Opção, “cantou a pedra” sobre um rombo no Banco Nacional de Desenvol­vi­mento Econômico e Social (BNDES) que faria o petrolão parecer coisa pequena. As investigações seguem em curso, ainda que não com a mesma estrutura da Operação Lava Jato.

Agora, a preocupação maior de Helio Telho é com a reforma política. Na verdade, nas palavras do procurador, o que está havendo é uma manobra de “autopreservação” do sistema corrupto infiltrado na política. A saída está no barateamento das campanhas e no aumento do poder do eleitor, mas ele não vê meios para que isso ocorra sem que haja pressão popular, citando como exemplos as manifestações de 2013 (“sem a qual a Lava Jato não poderia ter ocorrido”) e de 2015 (“fundamental para alcançar o impeachment”). A falta de mobilização agora, porém, salvou Michel Temer (PMDB) e pode causar o mal de deixar passar uma reforma política perniciosa e que só favorecerá os chamados “caciques” dos partidos políticos.

Nesta entrevista, Helio Telho dá sua visão sobre a futura titular da Procuradora-Geral da República (PGR), a goiana Raquel Dodge — “ela vai reverter a baixa expectativa da imprensa” — e diz que faria o mesmo acordo que Rodrigo Janot, o atual procurador-geral, fez com a JBS. E iria mais longe: usaria a mídia para convocar todos os que estivessem envolvidos em organizações criminosas a procurar o Ministério Público para delatar os comparsas, antes que estes tomassem a iniciativa. “

Cezar Santos — A reforma política em trâmite no Congresso está envolta em várias polêmicas, entre elas a de um fundo de campanha de R$ 3,6 bilhões. Como o sr. vê essa questão?

— Mais do que isso, podemos chamar o que está em votação de “reforma política”?
Na verdade, querem mudar para permanecer tudo do mesmo jeito. Ficou claro que o objetivo dessa reforma é uma espécie de autodefesa. O sistema corrupto infiltrado na política e foi alvejado pela Lava Jato e seus desdobramentos pelos Estados entrou em modo de autopreservação. O que observamos é que a pauta da reforma política esconde dispositivos para preservar esse sistema que está agora ameaçado.

— Preservar de quê?
Principalmente do eleitor. O grande medo que eles têm neste momento é sobre o que o eleitor pode fazer nas eleições de 2018. Muita gente que hoje usa o poder para se proteger e enriquecer está com medo de ficar fora. Curiosamente, há alguns dispositivos dentro da reforma que estão ali claramente para desviar o foco daquilo que é realmente perigoso e não está sendo devidamente observado. Por exemplo, o mandato de dez anos para magistrados de tribunais. Não tenho opinião formada sobre isso e acho que é válido discutir o tema, mas o fato é que isso não tem nada a ver com reforma político-eleitoral.

O fundo de R$ 3,6 bilhões foi também uma maneira de chamar atenção para uma coisa e esconder outra. O problema não é o tamanho do fundo, mas quem terá o poder de administrá-lo. Quem tiver esse poder vai mandar no País.

— Por que o sr. diz isso?
Sem financiamento privado de empresas e com campanha eleitoral cara, o candidato terá praticamente uma única forma de se financiar: buscando dinheiro nesse fundo que está sendo criado. Logicamente, quem tiver o poder de distribuir o montante — “fulano vai receber, mas beltrano não” — vai definir as eleições, não será o eleitor. E essa reforma eleitoral prevê expressamente que quem vai destinar os recursos do fundo são as direções nacionais dos partidos. Ou seja, os “caciques”, os donos dos partidos vão ditar os rumos das eleições. Na prática, o que se descobriu com a Lava Jato — principalmente com a delação da Odebrecht e da JBS — foi que as empresas não negociavam com políticos no varejo. Nem a JBS, muito menos a Odebrecht. Elas negociavam apenas com líderes partidários, com presidentes de partidos, com ministros, senadores e deputados importantes. O chamado “baixo clero” nem era recebido.

Essas lideranças recebiam o dinheiro e se encarregavam de distribuir o dinheiro entre os filiados que se candidatavam, para financiar suas campanhas. Então, o que estamos vendo com essa reforma é uma maneira de manter o poder nas mãos dessas mesmas pessoas, só que agora sem intermediários. Não vai ter mais Odebrecht, não vão ter os Paulos Robertos Costas [diretor de operações da Petrobras e um dos protagonistas do chamado “propinoduto”] da vida, o dinheiro vai sair do cofre público diretamente para os caciques continuem a distribuir o dinheiro. Por isso digo que essa reforma vem para mudar tudo e, com isso, deixar tudo do mesmo jeito. As pessoas estão muito preocupadas com o valor do fundo que está para ser aprovado e se esquecem do que realmente interessa, que é quem terá o poder nas mãos sobre esse dinheiro.

— Como o sr. vê a aprovação do “distritão”?
Não é o melhor modelo. Na prática, quando o conjugamos com a proibição de doação por empresas e com o dinheiro na mão dos caciques partidários, só haverá duas maneiras de ser eleito: ou “comendo na mão” do dono do partido ou sendo muito dinheiro, por ser rico ou por ter roubado muito. No caso, esse candidato vai usar o dinheiro na forma de caixa 2 para comprar apoio de lideranças. No caso de deputados, vão atrás de vereadores, prefeitos, presidentes de sindicatos, porque é assim que funciona a campanha eleitoral no interior, as pessoas não são relógio, não vão trabalhar de graça. Então, quando alguém observar um prefeito, um vereador, uma liderança municipal, um sindicalista, um padre, um pastor, qualquer um desses trabalhando para algum candidato, pode desconfiar que está recebendo alguma coisa. Esse dinheiro é transferido por debaixo dos panos, não aparece. É este tipo de campanha que teremos no ano que vem: ou com dinheiro de caixa 2 ou vindo de caciques que vão financiar candidatos que, depois, vão comer na mão deles. Por isso, essa reforma eleitoral é tão ruim.

— É uma reforma que piora o quadro?
Ela mantém o quadro, não muda nada. E isso é um problema sério, ao qual o juiz Sérgio Moro vem se atentando: o combate à corrupção e a redução de seu nível a patamares inofensivos ou pouco danosos não vai acontecer só por meio da Lava Jato, do Ministério Público, da polícia, da Justiça. A questão é que o sistema hoje é criminógeno, ele incentiva a prática da corrupção, leva a que os partidos separem o joio do trigo e lancem o joio como candidato. O bom político tem dificuldade em conseguir espaço nos partidos para se candidatar. E, como os partidos têm o monopólio da representação, só se pode ser candidato se for filiado a algum deles. Da maneira como as regras são, portanto, os bons políticos são excluídos, afastados, desestimulados a entrar na política. Já os maus políticos não abrem mão de seu espaço. Se a gente não mudar o sistema, teremos novos escândalos, isso vai ser recorrente.

Precisamos de uma reforma política que barateie as campanhas, que aproxime o eleitor do candidato e do eleito, que dê de fato poder ao eleitor. Essa reforma que está sendo feita agora nem passa perto de fazer isso. Pelo contrário, continua mantendo o monopólio do poder político na mão dos caciques, impedindo qualquer tipo de influência direta do eleitor nos rumos da campanha. O mais grave é que ainda não percebemos isto como sociedade: a importância de ter regras eleitorais que entreguem o poder para o eleitor e não para o cacique.

“Seria possível criar esse fundo de R$ 3,6 bilhões
sem gastar um tostão a mais, com o fim da renúncia fiscal do horário gratuito para os partidos”
— Como o sr. reitera, temos uma reforma que muda as regras para que o jogo continue o mesmo. O que seria, então, uma reforma de verdade, que fizesse com que o sistema deixasse de ser criminógeno?
A corrupção começa na eleição. O indivíduo hoje precisa de muito dinheiro para se eleger, então pratica a corrupção para conseguir o mandato; depois, continua corrupto durante o exercício do cargo para conseguir dinheiro para se reeleger. É uma bola de neve.

Precisamos acabar com essa lógica. A primeira coisa a fazer é baratear as campanhas. E como chegar a isso? Primeiramente, reduzindo o território que o candidato precisa percorrer para conseguir votos. Então, o voto distrital é uma necessidade. Porém, não pode ser um voto distrital puro, porque este tende a enfraquecer os partidos e fulanizar demais a campanha. Ou seja, o eleito fica forte e o partido fica fraco. Além do mais, o voto distrital puro destrói as minorias, que perdem representatividade.

— E o voto ideológico?
Creio que ele seja contemplado pelo voto distrital, mas apenas o voto ideológico da maioria. O voto ideológico da minoria não ganha eleição. Na prática, teríamos um descompasso entre a estrutura ideológica da sociedade e a estrutura ideológica do Parlamento. O sistema eleitoral funciona quando contempla todos. Nesse caso ideal, no Parlamento há representantes da maioria e da minoria, de todos os segmentos sociais, proporcionalmente àquela representação. Esse é o grande desafio.

O voto distrital misto é o sistema alemão e garante isso. O eleitor vota duas vezes: a primeira, em um dos candidatos de seu distrito; depois, vota em um partido. Metade das vagas é provida pelo voto distrital e a outra metade pelo voto no partido. Ou seja, há uma distribuição do poder: nem o partido fica tão forte a ponto de sufocar o candidato, que também não consegue suplantar o poder do partido. Há um bom balanceamento.

— Mas o voto distrital misto seria uma saída interessante no Brasil? Pergunto isso porque ela viria com uma lista fechada ditada pelos caciques dos partidos.
A lista fechada tem balanceamento, também, porque, ao votar no partido, este vai conseguir um determinado número de cadeiras, que vai ser ocupado primeiramente pelos que foram eleitos pelo sistema distrital e apenas será completado pela lista. O poder do eleitor fica muito forte, ao mesmo tempo em que se dá também ao partido.

Por isso, o número de cadeiras do Congresso, no sistema alemão, não é fixo. Se o partido, por exemplo, consegue 10 vagas pela lista fechada, mas pela votação distrital consegue 11 vagas, o partido vai levar as 11 e terá de haver uma alteração na composição do Congresso para abarcar esse número. Ou seja, a cada legislatura o número de parlamentares aumenta ou diminui, por causa disso. Por outro lado, se aquele partido obteve 10 vagas na lista fechada, mas só fez 8 eleitos pelo sistema distrital, os 2 primeiros da lista completam a quantia. Ou seja, há uma lista fechada, mas, dependendo do número de votos do partido naquele distrito, praticamente todos os candidatos eleitos virão por via distrital e não pela lista. O partido continua com poder, mas não com um poder monstruoso para definir a ordem da lista e isso ser imutável. Claro, não temos tempo para aprovar o voto distrital misto para o próximo pleito.

— Em relação às próximas eleições, o Congresso diz que o voto “distritão” será apenas uma transição para o voto distrital misto.
Sim, e talvez fosse uma transição interessante, não fossem as regras que estão para aprovar. Com certeza, haverá muitos partidos disputando, muitos candidatos, e o dinheiro não vai dar. Para baratear, seria necessário reduzir o número de candidatos e o de partidos. Ocorre que essa redução não pode ser feita na marra, com cláusulas de barreira e de desempenho, porque isso impede que novos partidos venham a substituir os partidos antigos que estão muito mais contaminados por esse sistema. As cláusulas de barreira e de desempenho teriam de ser para cada eleição.

O projeto do Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral [MCCE, coordenado pelo juiz Marlon Reis, com apoio de entidades como a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), que anteriormente bancou a Lei da Ficha Limpa e a da compra de votos] que está tramitando na Câmara dos Deputados é uma proposta interessante. Traz um mecanismo interessante que não precisa nem mesmo de mudança constitucional, em que poderia haver uma eleição parlamentar em dois turnos. No primeiro, se votaria no partido; nessa etapa, a votação proporcional de cada partido daria a quantidade de vagas a que ele teria direito na composição da assembleia. No segundo turno, a votação seria no candidato e se faria então a ordenação da lista. Porém, somente participariam do segundo turno os candidatos que porventura conseguisse pelo menos uma vaga na votação do primeiro turno. Em outras palavras, se criaria uma cláusula de desempenho para aquela eleição e o dinheiro do fundo de campanha iria apenas para os candidatos filiados aos partidos que conseguiram vaga no primeiro turno. É uma forma de baratear a campanha, já que haveria uma quantidade menor de candidatos e de partidos e apenas os que obtivessem o direito a vaga pelo voto do eleitor teriam acesso naquela eleição ao dinheiro. Não haveria uma lista fechada, a eleição seria mais barata e o poder de decisão seria dado ao eleitor.

A proposta de cláusula de barreira que está em discussão agora, no entanto, é péssima — além de inconstitucional, já que o artigo 1º da Constituição diz que o pluralismo partidário é uma cláusula pétrea —, porque toma o desempenho do partido na eleição anterior. Ora, em quatro anos esse partido pode ter feito muita besteira e o eleitor pode não querer saber de votar mais nele e em seus candidatos.

— Com a Lava Jato, a visão mudou bastante em relação aos partidos, principalmente os maiores.
Isso vale para praticamente todos os partidos. Assim, o eleitor pode não querer mais aquele partido, mas a cláusula de desempenho, aferida pela eleição de quatro anos atrás, imporá que esse partido receba maior quantidade de dinheiro. O que vai acontecer? Esse partido, que em tese teria agora uma rejeição maior do eleitor, tendo mais recursos, tem grande chance de se revigorar. É uma espécie de eternização dos partidos ruins. Em tempo: partido tem de ser proibido de mudar de nome.

— Por que essa observação?
É preciso que o partido tenha amor por seu nome e, assim, tenha também interesse em preservar esse nome. Se o partido fizer besteira e se sujar, terá de aguentar o custo disso na outra eleição. Proibindo a mudança de nome, o partido terá mais preocupação com isso e, por exemplo, saberá que passar a mão na cabeça dos filiados que porventura se envolverem em corrupção terá um custo alto para a marca da sigla.

— Por isso, talvez, vários partidos agora estão pensando em mudar o nome.
Todos querem mudar, porque sabem que o nome ficou sujo. Só que isso não pode acontecer, o partido precisa ter essa preocupação, esse zelo. Nome de partido político não pode ser papel higiênico.

— Isso não seria um sinal ruim em relação à aventada adoção do parlamentarismo, já que algo essencial a esse sistema — partidos fortes — é evidentemente algo muito distante ainda da realidade brasileira?
Esse discurso sobre “partido forte” é um problema. O que é um partido forte? Quando se dá pela eleição o poder ao partido — o que seria feito com as listas fechadas — está havendo uma concentração desse poder. Só que nossos partidos não têm democracia interna, eles têm dono, têm caciques. Ou seja, o poder não está indo para o partido, mas para seu cacique, para o dono. Sem democracia interna no partido, ficaria assim.

Hoje seria possível criar esse fundo eleitoral de R$ 3,6 bilhões sem gastar um tostão a mais. É que o fundo partidário tem hoje uma dotação orçamentária de R$ 800 milhões. Além disso, o horário eleitoral e partidário gratuito só é gratuito para os partidos, já que o poder público paga por aquilo. De que maneira? As emissoras de rádio e TV recebem uma isenção tributária equivalente ao que estão deixando de ganhar se fossem vender aquele tempo. Ou seja, é uma renúncia de receita é um tipo de despesa, um custo para o poder público. E qual é o custo disso? De R$ 1 bilhão. Ou seja, se tomarmos esse custo em dois anos — tanto do fundo partidário como da renúncia de receita do horário gratuito — isso já daria praticamente esses R$ 3,6 bilhões a cada intervalo entre as campanhas. Em suma, bastaria acabar com o horário gratuito e o fundo partidário e esse dinheiro fosse destinado para o fundo de campanha.

Poderiam, então, perguntar: de que os partidos sobreviveriam? Do mesmo que os sindicatos terão de sobreviver agora, com a reforma trabalhista: a contribuição espontânea de seus filiados. Com essas duas medidas, haveria o fortalecimento dos partidos — porque os que não tivessem filiados engajados não teriam dinheiro e iriam acabar. Os que sobrariam seriam fortes, partidos de base, construídos de baixo para cima. Então, a esquerda iria se mobilizar para erguer seu partido e depois mantê-lo; da mesma forma, a direita faria. Aquela quantidade imensa de partidos nanicos — que sobrevivem do fundo partidário e do horário eleitoral e que, de fato, viraram apenas um negócio para seus donos — acabariam naturalmente. Não precisaria ficar proibindo coligação, criando cláusulas de barreira. Toda a seleção de partidos se daria naturalmente.

— Seria como o “livre mercado da política”.
Exatamente, e sem gastar nenhum tostão a mais com isso. Teríamos partidos que precisariam se financiar, eleições em dois turnos, com o eleitor no primeiro dizendo para quem vão as vagas — ou até decidindo que partido receberá as vagas e qual receberá o fundo eleitoral. Ou seja, teremos partidos preocupados em ganhar o eleitor, preocupados com seu nome, partidos que, enfim, não estarão no Congresso Nacional trocando cargos e votos por emendas parlamentares. Aí, sim, teremos uma democracia representativa que vai dar um golpe muito forte na corrupção, fazendo com que a política volte a ser aquilo que a gente precisa.

— Essa ideia ainda não foi sistematizada?
Ainda não, mas estamos mostrando que existe uma alternativa boa, barata e que resolve. É claro que isso só será colocado em prática quando o povo perceber e sair às ruas para cobrar. Porque, se for depender dos políticos, caciques e dos partidos atuais, não acontecerá nada, eles têm ojeriza a isso. Há uma proposta do senador Ronaldo Caiado (DEM-GO) que propõe acabar com o horário eleitoral gratuito e transfere o dinheiro para um fundo que poderá ser usado pelo partido como quiser na campanha — se quiser comprar horário na TV ou em outra propaganda, eles que resolverão. Essa proposta prevê também que o TSE [Tribunal Superior Eleitoral] crie uma plataforma pela qual o eleitor possa destinar até 80% do valor do fundo eleitoral para o partido ou o candidato que achar que deva. É uma ideia que vai na mesma linha que eu acabei de defender, pois transfere ao eleitor o poder de determinar para onde vai o dinheiro.

— No atual quadro do Congresso lamentável que temos, volta e meia fala-se em uma Assembleia Constituinte à parte. Como o sr. vê essa ideia?
Eu considero que seria um desastre. Primeiramente, quem seriam os constituintes, quem poderia se candidatar? Quem financiaria a campanha? Qual poder seria dado a eles? O que eles poderiam mudar? Então, quando se fala em algo assim, lembro-me do primeiro ato da Assembleia Constituinte venezuelana, no governo de Nicolás Maduro, que foi destituir a procuradora-geral da República, que teve também preso seu marido.

“O eleitor se ilude ao achar que tem escolha”

— Mas no Brasil uma Constituinte seria algo bem diferente do que ocorre atualmente na Venezuela, não?
Mas fica a questão: quem vai definir as regras para essa Constituinte? Quem está lá hoje? Não funciona. Não vejo como isso pode trazer melhorias. Pelo contrário, vejo que pode mergulhar o País em um ambiente de incerteza jurídica e institucional. Aí será o caos, porque nem a mínima segurança nas instituições nós teremos, porque não há como estabelecer que uma Constituinte dessas só mude as coisas para melhor.

— A desilusão da população depois de tantos anos não cria um cenário de desesperança que, de certo modo, imponha essa Assembleia Constituinte?
Eu acho que a repetição desses fatos realmente cansa. A população está cansada de ver a recorrência dessas notícias sobre corrupção. O que talvez esteja faltando — e essa é uma das razões pelas quais eu achei que deveria conceder esta entrevista — é o trabalho de fomentar na sociedade a discussão sobre esse tema. As pessoas precisam começar a debater saídas e passar a exigir mudanças.

Falam que as manifestações de 2013 não resultaram em nada. Mas isso deu, sim, muitos frutos. Não fosse aquela mobilização, não teríamos tido a Lava Jato. Bas­ta re­to­mar o que ocorria, então, naquele mês de junho de 2013. Havia um projeto de emenda constitucional (PEC) que estava quase sendo aprovada que retirava do Ministério Público a competência de fazer investigações criminais [PEC 37]. O êxito da Lava Jato, ob­viamente, não veio apenas da La­va Jato: a Polícia Federal e a Re­cei­ta Federal também estiveram juntas na força-tarefa, com 13 procuradores de dedicação exclusiva, quase 50 peritos, assessores e analistas trabalhando só nessas investigações. Com a PEC 37 em vigor, com certeza não teríamos a Lava Jato, não teríamos a Receita investigando juntamente com o MPF e a PF.

Outra questão: na esteira da derrubada da PEC 37, houve a aprovação de duas leis importantíssimas para o resultado da Lava Jato. A primeira foi a Lei Anticorrupção Empresarial e a segunda, a Lei das Organizações Criminosas, que regulamentou a colaboração premiada e a ação controlada, que foi aplicada com a delação de Joesley Batista [sócio da JBS]. E essas leis só foram aprovadas porque as pessoas foram às ruas em 2013, ocuparam o telhado do Congresso Nacional e causaram pânico nos parlamentares com isso. O então presidente do Congresso, Renan Calheiros (PMDB-AL) convocou os líderes e mandou procurar o que estava tramitando e que poderia dar resposta àquele reclame social. Encontraram essas duas leis e as aprovaram a toque de caixa. Elas entraram em vigor seis meses depois e aí vem a história que a gente conhece.

Da mesma forma, o povo foi às ruas no ano passado e houve o impeachment de Dilma Rousseff (PT); o povo não foi às ruas este ano e não houve o afastamento de Michel Temer (PMDB). Por isso digo que é necessário que, primeiramente, o povo entenda o que está acontecendo, debata a questão e passe a ir às ruas para exigir que o Congresso aprove uma reforma política que dê poderes ao povo.

— Mas o povo não está cansado demais para isso? O cenário é muito grave e o prazo máximo para fechar a reforma política é de menos de um mês e meio.
O povo está cansado, realmente, e está achando equivocadamente que vai resolver o problema quando for às urnas no ano que vem. A participação popular não ocorre só de dois em dois anos, na frente do teclado da urna. Não é só o voto; este é apenas uma das ferramentas do povo. É importante, mas não é a única nem a mais poderosa.

— Pelo contrário, o que a gente viu ultimamente foi que nos anos em que não houve eleições — em 2013 e 2015 — ocorreram as manifestações mais genuínas e fortes.
O povo está iludido achando que em 2018 vai poder votar em quem ele quiser, mas não vai. O povo vai votar em quem os partidos disserem que ele poderá escolher. E prevejo que esses partidos, então, vão lançar poucos candidatos — e candidatos sujos, antigos.

— E, com o voto “distritão”, não será necessário lançar tantos candidatos, já que não haverá a necessidade de fazer quociente eleitoral para eleger ninguém.
O eleitor vai ficar sem opção, na verdade. As regras que estão sendo debatidas no Congresso não vão estimular o partido a ter de lançar bons candidatos.

— Um dos argumentos utilizados para adotar o distritão — e que parte da população aprova — é que com ele o povo vai eleger realmente os mais votados.
É uma ilusão, porque os partidos poderão lançar, cada um, meia dúzia de nomes horríveis e as opções do eleitor vão ser poucas e ruins. Então, não terá como dizer que não quer votar em nenhum daqueles nomes, porque só haverá aqueles e os mais votados vão ganhar. É mais ou menos como ir a um restaurante de comida que você não gosta e ter uma variedade de pratos à escolha. Nenhum lhe agrada, mas você vai ter de escolher algum entre aqueles. O eleitor diz “Ah, mas eu quero trigo”. E os partidos respondem: “Não, só temos esses joios aqui à escolha, o trigo a gente separou e deixou de fora”.

— Poderíamos resumir dizendo que no Brasil de hoje temos a classe política contra o povo brasileiro?
Temos uma dissociação entre quem tem o poder político e quem não tem. Isso está claro. Não vou, porém, dizer que isso é um problema da classe política. Temos partidos no Brasil com mais de 1 milhão de filiados.

— O PT tem 2,5 milhões e o PMDB tem 1,5 milhão de filiados.
Por isso, é possível dizer que quem é filiado a um partido, ainda que nunca tenha se candidatado, não deixa de ser político. É um político, ainda que não tenha disputado mandato, talvez por falta de espaço em seu partido. Não se pode dizer que essa pessoa, sendo parte da classe política, entretanto esteja dissociada da sociedade. A questão é que os donos dos partidos, os que têm hoje a decisão sobre eles na mão, claramente estão muito longe do que é o desejo da população. Isso parece ter piorado.

— É um efeito colateral causado pela Lava Jato, que leva esses políticos a investirem na própria sobrevivência com todos os meios que têm — e o uso do mandato em proveito próprio é um deles.
É o modo de autodefesa. Apa­ren­temente, há também uma apatia na sociedade, uma falta de mobilização, talvez por não ter uma bandeira. As pessoas não perceberam ainda a necessidade de ter uma reforma eleitoral que realmente aproxime o eleitor do político. No dia em que tiver essa percepção e passar a empunhar essa bandeira, talvez possamos ter um País diferente.

Outro fator que tem prejudicado muito a mobilização popular — e os políticos que querem a sobrevivência desse sistema corrupto estão se aproveitando disso — é uma divisão muito clara entre brasileiros de ideologia de esquerda e de direita. Essas pessoas ainda enxergam, equivocadamente, que o adversário ideológico deles é o inimigo, en­quanto é apenas o adversário. O inimigo é o sistema corrupto. Só que não compreenderam isso ainda.

Quando há uma convocação para sair às ruas e protestar contra algo, pelo menos uma parte da pauta é comum entre direita e esquerda, mas os lados não se unem. É como se um achasse que o protesto conjunto com o outro fosse uma forma de fortalecer o adversário — no caso, visto erradamente como inimigo.

Voltando à reforma política: todo mundo no Congresso tem uma receita para ela. Paradoxal­mente, essa receita é igual para todo mundo, é a mesma. Seria uma reforma política que criasse regras para facilitar a própria reeleição e dificultar a do adversário. En­quan­to essa mentalidade prevalecer, te­remos grandes problemas para aprovar uma reforma política boa. Es­ta só vai ocorrer quando houver condições para que todos garantam sua representação no Congresso, na classe política. Se eu sou de direita, tenho de respeitar a esquerda e vice-versa, porque existe um número considerável de pessoas “do lado de lá” e que tem o direito de se ver representada no Congresso. É preciso criar uma regra para que a cada eleição exista o debate e vigorem as melhores ideias.

— Até porque no Congresso é preciso ser construído consenso.
Exatamente. Temos muito que evoluir e essa evolução tem de ser nesse sentido.

— O problema hoje é que a maioria dos congressistas não são nem de esquerda nem de direita, mas de negócios.
Isso ocorre porque partido político hoje virou negócio. Tem gente que acha que deveríamos limitar as reeleições de parlamentares. Eu já penso que não. Se migrássemos para um sistema como o que eu defendi aqui, o político passaria a ter necessidade de zelar por seu mandato, de estar ali atendendo ao anseio do eleitor. Se há a preocupação com a reeleição e o sistema obriga a fazer a von­tade do eleitor, o político vai passar a votar de acordo com o que o eleitor quer. Porque, se “queimar” o próprio nome, a chance de se reeleger vai ficar praticamente nula. Só que hoje o sistema não permite isso, o eleitor fica alijado do processo de decisão.

— Há quase três anos, o sr. concedeu uma entrevista histórica ao Jornal Opção, em que apontava que uma investigação sobre a corrupção no BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico Social] faria o rombo na Petrobrás parecer pequeno. Em que pé está esse caso hoje?
As investigações estão se desenvolvendo em Brasília e já tivemos algumas operações em relação a elas. Mas o processo ainda é de amadurecimento, ainda há muita coisa a ser desvendada.

Helio Telho recebe equipe do Jornal Opção em seu gabinete: “Faria o acordo que Janot fez com a JBS e iria mais longe” | Foto: Fernando Leite / Jornal Opção
— E ensejaram outra CPI do BNDES.
As CPIs nos últimos anos mudaram seu foco — e a Lava Jato de­mons­trou isso. Algumas dessas comissões foram criadas não para investigar um fato em si, mas para achar investigados ou para intimidar investigadores. Se vocês se lembram, no fim da gestão de Roberto Gurgel como procurador-geral da República, havia uma CPI no Congresso, salvo engano a do Cachoeira, em que quiseram transformar Gurgel em investigado, enquanto o trabalho seria o de esmiuçar a ligação do envolvido com partidos e com políticos. De repente, virou uma forma de contra-ataque.

Tivemos também a CPI da Petrobrás, que virou uma forma de ganhar dinheiro e de querer investigar Rodrigo Janot [atual procurador-geral da República]. Agora, a CPI do BNDES, caso possam ver o plano de trabalho dela, não estão investigando as irregularidades da concessão de financiamentos ou rastreando o dinheiro, mas encaminhando para intimidar os irmãos Batista [Joesley e Wesley], que são colaboradores da PGR e que entregaram provas de corrução contra vários parlamentares. Ou seja, o caminho que essa CPI percorre visa tentar “melar” a colaboração premiada dos irmãos Batista.

Em relação à investigação séria mesmo, a que ocorre no MPF, em Brasília, ela está transcorrendo com o estudo de várias operações, inclusive da própria JBS. A grande questão é que hoje essas investigações não contam com a estrutura que a Lava Jato tem. Há apenas dois procuradores e eles não têm dedicação exclusiva. As­sim, as investigações sobre o BNDES andam realmente mais devagar.

— Qual sua expectativa em relação à nova procuradora-geral da República, a goiana Raquel Dodge, que substituirá Rodrigo Janot a partir de meados de setembro e que teve seu nome envolto em polêmicas desde sua escolha?
Algumas notícias divulgadas pela imprensa criaram uma expectativa muito baixa em relação a como será o trabalho dela. O primeiro fato que foi veiculado e que seguiu nesse rumo é o de que ela seria a preferida do Palácio do Planalto. Isso ainda em plena campanha eleitoral no Minis­tério Público Eleitoral, quando nós, procuradores, ainda não havíamos votado. Soltaram essa notícia de que ela seria a preferida de Michel Temer e outra, também, de que seria também a preferida de Gilmar Mendes [ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) e presidente do TSE].

Evidentemente, quem está no MPF e conhece a história da Procuradoria e da própria Raquel sabia que o nome preferido do Planalto não era o de Raquel. Minha impressão particular foi de que vazaram do próprio Palácio essa notícia porque sabiam que vincular qualquer candidato ou candidata ao Planalto ou ao ministro Gilmar Mendes poderia tirar votos dessa pessoa. Vocês podem perguntar: eles queiram “queimar” Raquel porque não a queriam? Não exatamente. É que havia uma especulação sobre quem seriam os favoritos a estar na lista tríplice. Raquel era um dos nomes, assim como Nicolau Dino [candidato que alcançou o maior número de votos na eleição] e Mário Bonsaglia [3º colocado]. O próprio Palácio do Planalto especulou isso várias vezes. Mas o preferido do Planalto, eventualmente, não estava entre esses três nomes. O objetivo, em minha avaliação, era enfraquecer um desses nomes para que o nome que eles mais gostariam tivesse mais chance.

— E quem seria esse nome?
Não sei quem seria, mas um dos candidatos, o dr. Eitel [Santiago], um grande membro do Ministério Público e a quem eu respeito muito, foi secretário de Segurança Pública da Paraíba, na gestão do então governador Cássio Cunha Lima (PSDB). Ou seja, ele tem uma ligação com o PSDB. A meu ver, talvez o Planalto preferisse um candidato com esse tipo de ligação do que outro. Não penso que haveria qualquer controle sobre Eitel, mas, na cabeça do político, pode passar que teriam uma chance de alcançar uma maior proximidade com alguém desse perfil, algo nesse sentido. Em minha avaliação, o Palácio do Planalto pode ter tentado tirar Raquel por achar que, dos três favoritos, fosse a que pudesse ter menos votos, sendo mais fácil enfraquecê-la para dar espaço a alguém que achassem ser mais interessante.

— Mas, depois da eleição e da escolha de Raquel como procuradora-geral da República, houve a reunião noturna e fora da agenda dela com Temer. Como o sr. avalia esse acontecimento especificamente?

— Completando: juntando-se isso ao fato de ela não ter sido a primeira colocada da lista tríplice, o quadro não ficou grave diante da opinião pública?
Com a eleição, em que ela ficou em 2º lugar, houve a concretização de um resultado que o Planalto não esperava. Nicolau Dino foi o vencedor entre os procuradores, mas seu nome não era aceito pelo presidente da República. Primeiramente por acharem que Dino seria o mais próximo de Janot e, obviamente, Temer não tem gostado do que o atual procurador-geral anda fazendo com ele. O segundo ponto é que Nicolau Dino é irmão de Flávio Dino [governador do Piauí pelo PCdoB], que talvez tenha sido o político que mais lutou contra o impeachment da presidente Dilma e, consequentemente, contra a ascensão de Temer à Presidência. Outro ponto é que Nicolau era procurador eleitoral e no julgamento da chapa Dilma-Temer, em plena campanha à PRG, ele não aliviou para Michel Temer, que seria quem depois teria o poder de nomeação. Mostrou uma autonomia que o presidente, acho, não queria. Então, Nicolau Dino não serviria.

O 3º colocado, Mário Bonsaglia, além de ter ficado atrás de Raquel, não tinha algum motivo especial para ser o nome escolhido na lista tríplice. Ainda que não façamos questão de que seja nomeado o mais votado — sempre fizemos questão apenas que fosse alguém da lista —, ficaria ruim para o presidente que Mário fosse o nomeado, principalmente porque os presidentes do PT vinham sempre nomeando os primeiros colocados. Já para que fosse Raquel Dodge a escolhida havia um discurso: seria a primeira mulher na história à frente da PGR — e Temer havia sido criticado por ter um ministério cheio de homens —, teve quase o mesmo número de votos que Nicolau Dino e é muito bem preparada, com um currículo denso.
Ela era a preferida de Temer? Não, mas entre os três nomes se tornou politicamente o mais conveniente, não necessariamente porque vá fazer o que querem eles do Planalto, muito pelo contrário.

— Mas como explicar a reunião extra-agenda?
Na minha avaliação, desde que houve a denúncia do procurador-geral a partir da gravação do encontro no­tur­no do presidente com Joesley Ba­tis­ta, há uma tentativa de implantar essas reuniões no Palácio do Jaburu [residência oficial de Michel Temer] fora da agenda, com o intuito de mostrar que isso seria uma praxe do governo e que não haveria nada demais em ter recebido o dono da JBS naquele horário. Nada melhor do que criar uma situação assim com a futura procuradora-geral da República para reforçar esse discurso. Para mim, ela caiu em uma armadilha. Talvez o Palácio do Planalto não tenha sido leal com ela e quis tirar proveito político de uma situação.

— Raquel Dodge foi ingênua?
É preciso pensar que nós, do Ministério Público, não somos políticos profissionais. Somos da área do Direito. Quem está no Palácio do Pla­nalto tem uma vida inteira de política. Não dá para comparar a habilidade e a estratégia de um lado com o outro, de gente que não é da área. Nesse terreno, então, somos presas fáceis.

Raquel Dodge, porém, tem história e currículo para ser, na PGR, uma procuradora com gestão até melhor do que seus antecessores. Tenho ótima expectativa em relação ao trabalho que ela vai desenvolver. A baixa expectativa que a imprensa tem criado em torno de seu nome tem a ver com esses três fatores a que me referi. Quem está levando esses fatores muito a sério para dar um prognóstico sobre seu trabalho está muito en­ganado. Creio que, em algum tempo, mesmo que ela não tenha de se preocupar com isso, essas expectativas vão se reverter. Ela vai, digamos assim, decepcionar as baixas expectativas.

A gente não pode se esquecer de que ela não foi escolhida pelo presidente ao acaso. Houve uma lista que ela integrou como 2ª mais votada, com pouca diferença para o vencedor. Os procuradores da República que a co­nhecem entenderam que ela teria condição de fazer um bom trabalho e a colocaram na lista. Se achássemos que ela seria uma “engavetadora de saias”, com certeza não teria ido para a lista.

A respeito da lista tríplice — muita gente não compreende muito bem —, ela não é para que nós escolhamos quem queremos que seja o procurador-geral da República, não é esse o objetivo. Temer poderia escolher qualquer um dos procuradores com mais de 35 anos e dez anos de carreira. A ideia da lista é de limitar o poder de escolha da Presidência àqueles três nomes, como que se os procuradores lhe dissessem: “Nós não queremos que você escolha nenhum desses mais de 900 nomes, você pode escolher apenas um entre esses três”. Ou seja, a lista é muito mais um poder de veto antecipado. Vetamos todos os outros e o presidente pode escolher, entre aqueles três nomes, o que achar melhor. O presidente não pode escolher qualquer nome, mas, ao mesmo tempo, não o amarra a ponto de ter de escolher o primeiro da lista, porque o procurador-geral da República é um cargo de muito poder e tal poder precisa ter o mínimo de legitimação democrática, o que é obtido pela interferência do presidente da República e do Senado em sua escolha. Afinal de contas, presidente e senadores foram eleitos.

Cezar Santos — O que o sr. pode dizer a respeito da Operação O Re­ce­bedor [sobre pagamento de propina, formação de cartel e superfaturamento em obras de ferrovias], que tem goianos envolvidos em altas somas?
Nós tivemos, ao longo da apuração das irregularidades na Valec, que se iniciaram em 2009, várias operações. A primeira foi a Trem Pagador, que resultou na condenação de Juquinha [apelido de José Francisco das Neves, que foi presidente da empresa estatal por vários anos], juntamente com sua mulher e o filho mais velho. Juquinha está apelando e o recurso está no tribunal para ser julgado. A Operação O Recebedor resultou em uma denúncia criminal contra ele. A denúncia foi recebida e a audiência de instrução e julgamento deve ocorrer em outubro.

A Operação Tabela Periódica, bem maior, investiga o cartel de todas as empreiteiras investigadas no cartel da Valec. É um trabalho bem mais demorado. Na próxima semana, deve haver outra denúncia nesse caso. A operação mais recente é a De Volta aos Trilhos, também sobre lavagem de dinheiro, em que descobrimos que Juquinha e seu filho ainda estavam escondendo patrimônio ilícito. Isso resultou na prisão dele, por essa operação, já que continuava a praticar a lavagem de dinheiro, está preso desde maio, ele e o filho, na Casa de Prisão Provisória (CPP).

Elder Dias — Como está a investigação sobre os investimentos no exterior com recursos do BNDES? Como ocorreria uma eventual devolução de valores envolvidos?
É uma investigação muito complexa, por se dar fora do País e incluir países que podem eventualmente não querer colaborar. De qualquer forma, podemos ter ajuda de onde não esperávamos, por exemplo, de empresas que receberam esses financiamentos. Temos de nos lembrar de que a Odebrecht e a JBS estão entre as que fizeram acordo com o Ministério Público. Essas colaborações devem trazer alguma informação e permitir que as investigações avancem mais do que se dependêssemos só de governos estrangeiros.

Uma empresa como a Odebrecht, que fez um acordo como o que fez, se resolvesse não cumpri-lo, quebraria, porque perderia todos os benefícios. Na prática, ela não tem a opção de não colaborar.

Cezar Santos — Esse dinheiro, então, não “está” com os governos estrangeiros, mas com as empresas que tocam as obras?
Esse dinheiro, na verdade, vai lá para fora e, em parte, é empregado na obra, outra é lucro da empresa, uma terceira é para propinas. No caso da Odebrecht, como fez um acordo, essa reparação de danos já está prevista.

Elder Dias — É que, na ideia geral da população, o governo brasileiro deu dinheiro para Angola e Cuba, por exemplo.
Não é bem assim. O governo emprestou o dinheiro para que essas empreiteiras tocassem essas obras. Foi um financiamento e, à medida em que essas parcelas forem vencendo, terão de ser pagas de acordo.

Elder Dias — A gestão de Rodrigo Janot à frente da PGR fica maculada pelo acordo de delação com a JBS, considerado muito desequilibrado? A controvérsia sobre os benefícios que, para grande parte da opinião pública, foram exagerados tem algum fundo de verdade?
Janot errou não no acordo, mas no modo em que o comunicou. Eu teria feito o mesmo acordo e teria ido até mais longe: teria chamado a imprensa e dito que o acordo com a JBS — além de ser destinado a investigar e trazer provas para derrubar o sistema corrupto — era um recado. Um recado para quem? Para as outras empresas e membros de organizações criminosas. Um recado muito claro: quem vem aqui, na nossa “casa” [o Ministério Público], entregando provas e colaborando de fato, sem esperar a gente ir atrás, vai ter muita generosidade nossa em troca. Já quem resiste, quem espera a Polícia Federal tocar a campainha às 6 da manhã, quem cria todo tipo de dificuldade para as investigações, com esses nós vamos ser muito duros. Então, que não nos esperem; que venham até nós, para sermos generosos.

Elder Dias — Essa seria, então, a diferença dos acordos da Odebrecht e da JBS?
Sim. Em uma organização criminosa, o principal pilar é a lei do silêncio, a “omertà” [“humildade”, em italiano, palavra usada para definir o código de honra das organizações criminosas italianas]: eu não te denuncio e você não me denuncia, assim continuamos a atuar. Quando alguém trai os outros, essa organização desmorona, porque se abre uma brecha por onde entra a repressão estatal. Então, para acabar com uma organização criminosa, é preciso plantar a desconfiança, a semente da traição. Assim, quem contar primeiro vai ganhar mais benefícios e quem vai se lascar será o outro. Por isso, eu digo que, se fosse Janot, teria feito isso.

Elder Dias — O sr. teria sido mais didático…
Eu teria dito: “Fiz [o acordo com a JBS] e faço de novo, e isto é um recado: se você estiver pensando que seu comparsa pode te delatar, venha aqui antes, porque seremos generosos com você. Mas, se esperar o camburão da PF tocar sua campainha, não adianta achar que depois vai se dar bem, não vai ser assim”.

Cezar Santos — Mas há um clamor na sociedade em relação a isso, porque o acordo foi muito vantajoso para os irmãos Batista…
Mas tem de ser mesmo (enfático). É preciso estimular que os membros das organizações criminosa a delatar. Só se faz acordo de colaboração premiada com bandido, com gente boa não se faz. Um sujeito honesto não tem o que delatar, não faz parte desse tipo de coisa. Só há como fazer esse tipo de negociação com quem cometeu crime. E o que é o acordo? Eu dou um benefício legal a ele, que, em troca, me repassa instrumentos para acabar com a organização criminosa de que faz parte. Se for olhar exclusivamente sobre a situação de quem fez o acordo, verá uma injustiça, porque cometeu crimes e não vai ser punido com a pena merecida pelo fato grave que praticou. Então, não foi feita justiça para esse caso, mas a lógica da colaboração premiada não é para fazer justiça para um caso, mas para desmantelar uma organização que está dando um prejuízo muito maior.

Cezar Santos — Essas vantagens podem ser reduzidas?
Se eles fizeram o acordo e assumiram a obrigação de contar tudo, mas ficou provado que esconderam alguma coisa ou se voltarem a cometer crimes depois, perdem os benefícios. Essa é outra vantagem desse tipo de acordo, pois a gente não perde as provas que eles produziram. Além de tudo, Joesley e Wesley Batista ficarão à disposição da Justiça para depor sempre que forem chamados. E, como eles denunciaram 1,8 mil políticos, vão ter de ficar de prontidão até o fim das investigações, durante anos. E depois, quando virar processo, também terão de se apresentar ao juiz. Além de tudo, a J&F [holding controladora da JBS] vai pagar R$ 10 bilhões em indenização. E se deslizar, vou repetir, perde tudo. Então, a coisa não saiu de graça como podem pensar. Por isso, reitero: faria o que Janot fez e iria mais longe. Hoje, se tiver alguma situação de investigação sob minha responsabilidade e alguém envolvido vier colaborar antecipadamente, também vou ser generoso dessa forma também.

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